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terça-feira, 6 de novembro de 2012

O Copo





Sete e meia da manhã, ele despertou com barulho dos botões que fazem desactivar o alarme.
O Chefe Gil acabou de chegar. Era a hora de sentir as luzes a acender, a televisão a vomitar desgraças, os reformados a bater as peças de dominó na mesa. Sabem à pala disso, um dia estive para ir “com os porcos”, estava mesmo na ponta de uma mesa, não fosse o Chefe Gil a chegar-me para o centro da mesa e era uma vez. Podia dizer adeus ao estabelecimento que me acolheu desde o primeiro dia da minha vida. Abençoado sejas chefe Gil.
Eu era de vidro temperado, ondulado, com alguns riscos. 07X11Cms e com capacidade para 15cl. Estava ao lado de uns quantos outros que me invejavam por eu sentir as mãos mais delicadas, os lábios mais carnudos. Não é para me gabar mas era mesmo verdade.
Primeira cliente tinha acabado de entrar, era a Dona Herculina, ela nunca me tinha calhado na rifa, e não era hoje que isso iria acontecer. “Quero um galão bem quente e uma torrada com pouca manteiga. Não se esqueça que quero adoçante.” – disse ela numa voz que se arrastava ainda mais lenta que a do Gaspar.- Pelo olhar do Chefe deu para perceber o quanto era aborrecido “levar” com ela logo pela manhã. Mas por outro lado eram os clientes o sustento do estabelecimento. Reparei no chefe a estender a mão para cortar duas fatias do pão de forma e as colocar na torradeira. A torrada estava quase pronta, quando do nada aparece a mão do chefe a pegar em mim e a pôr-me debaixo de um bico de um manípulo da máquina de café. Enquanto o café banhava o meu corpo com um aroma a malte, eu rogava as mil pragas ao meu chefe. Era desta que a minha reputação ira por água abaixo. O café tinha parado. Era a vez de o leite escorregar pelo meu corpo e ganhar outra cor. Sentei o meu rabo a alapar-se num pires que não dava muita conversa. Vejam lá que nem me mandou o bitaite do costume: “Tens o rabo tão quente…” Depois foi a vez da colher se encostar a mim com um riso sarcástico pelo que se estava ali a passar.
O Chefe Gil colocou a torrada e eu próprio numa bandeja e levou-nos até à mesa da Dona Herculina. Foi ai que não podia ter ficado mais assustado. Ela tinha colocado batom nos lábios. VERMELHO! “Isto não me está a acontecer. Isto é um pesadelo.” – pensei eu muito irritado. -
Na televisão estava a “Querida Júlia”. Ela soltou um daqueles gritos que contem uns agudos, que nem o Fernando Pereira consegue imitar. Quase me desfazia em pedaços. Que dia este. Quando pensei que não podia ser pior, depois de A Dona Herculina mexer o adoçante com a colher que fazia troça de mim, ela pegou em mim abriu a boca, com aqueles lábios pintados de VERMELHO, e, foi então que reparei que ela não tinha trazido a prótese dentária. Mas que visão aquela. Não, não estejam com essa cara pois nem imaginam como é. Nem por sombras.
Depois de todo o líquido ingerido e a torrada mastigada, ali estava eu com a marca do batom VERMELHO, à espera que o Chefe Gil me levasse para a máquina de lavar com a máxima urgência. Finalmente pegou em mim e pelo caminho a colher continuava com aquele riso sarcástico. Deixa-te estar, eu vou falar com a máquina de lavar para arranjar maneira de não ficares bem lavada e depois vais para o lixo pelo teu mau aspecto. A tua hora chegará.

Depois de um banho bem quentinho a uma temperatura agradável, a máquina de lavar deu sinal ao Chefe de que tinha terminado o seu trabalho. Depois de umas discussões ocas sobre futebol, o Chefe Gil abriu a tampa da máquina de lavar loiça e aquele barulho típico de um café repleto de clientes absorveu todo este meu ser. A Dona Herculina já se tinha ido embora, porque, o canal da televisão já estava na Sic Noticias. No cesto retirado da máquina de lavar eu estava acompanhado pelas chávenas de café, outros copos de galão, pires e um cesto repleto de colheres. Com alguma rapidez o chefe começou a retirar os pires, o cesto das colheres e por fim as chávenas de café e os copos de galão. Ao arrumar os copos de galão com o rabo para cima, eu que tinha ficado para último fui chocar com o cesto das colheres, que fez com que escorregasse daquela mão áspera e calejada. Saltei três vezes pelo chão, até bater com violência contra a parede. Mesmo antes de me desfazer em cacos ouvi a colher a dizer “parte, parte”, e depois de me desfazer em cacos ouvi alguém a dizer: “Bingo!”

Agora, e, mais uma vez graças ao Chefe Gil por fazer reciclagem, isto é, graças a ele voltei a ser útil. Desta vez estou num lar de idosos. Continuo a ser um copo de galão.

Isto agora faz-me lembrar a Dona Herculina.

2 comentários:

  1. Depois de ler este texto, tomar um galão nunca mais será a mesma coisa!!!!... Achei interessante a personificação do copo.

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    1. Eheheheh!!!
      Tentei ser o meu melhor na vida de um copo!!!
      Obrigado Helena pela sua opinião!!
      ;)

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